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DIÁRIO DE UM COMBATENTE I

EXPEDIÇÃO A MOÇAMBIQUE (1916)
Por: José Manuel d’Oliveira Vieira
(Artigo publicado no "Jornal de Alferrarede" Nº 270Abr2008)

“…ordeno a V. Ex.ª faça directa e telegraficamente Lisboa pedidos necessários mobilização de forças…”
Assim dizia o telegrama enviado pelo Governador de Moçambique para Comandante da expedição portuguesa, quando tomou conhecimento da declaração de Guerra da Alemanha a Portugal, no dia 9 de Março de 1916.

Mapa de Operações 1916

Um mês e nove dias depois (19 de Abril de 1916), já a 5ª Bateria Expedicionária a Moçambique do Regimento de Artilharia de Montanha* da qual fazia parte o Sargento Alfredo Alves da Silva se encontrava na foz do Rovuma, Kionga.

Alfredo Alves da Silva

Kionga - Trincheira 1916

Os acontecimentos que a seguir se descrevem fazem parte de uma velha agenda de 1912, reconvertida para 1916. Nesta “agenda” e nas “cartas – mensagens” guardadas durante 92 anos, Alfredo Alves da Silva, que foi Sócio nº 133 da Sub-Agência da Liga dos Combatentes da Grande Guerra de Abrantes, anotou o inferno que foi combater os alemães nas margens do Rio Rovuma, quando Angola e Moçambique estavam nos projectos expansionistas da Alemanha:

DIÁRIO

ABRIL
19 - Marcha da divisão d’artilharia 7cm m/82 para Kionga**.
MAIO
1 - Marcha de Kionga para Namôto.
5 - Marcha de Namôto** para Namaca* com 1 peça para bombardear quartel e fábrica margem esquerda Rovuma, retirando à noite com chuva e passagem rio braço mar.
6 - Marcha de Namôto para o posto de Metchimo-Nachinomoca**, pelas 15h. Passagem pântano aproximadamente 1 km e 2 ribeiras, chegada ao posto pelas 20 h (1 peça).
7 - Bombardeamento do quartel que fica defronte posto pelas 6 h (11 tiros g. b.) distância 1600-1700.
8 - Demos 2 tiros para o mesmo quartel alemão pelas 5h ½. A esta mesma hora ouviu-se grande tiroteio no posto de Nhica**, sabendo-se mais tarde que alemães tinham atacado mesmo posto com 2 metralhadoras e alguma infantaria como represália por termos ontem bombardeado o quartel.
9 - Do ataque que ontem houve em Nhica morreu 1 sargento e 11 feridos, prestando nossas forças (1 pelotão Infantaria 60 praças). Neste ataque apoderamo-nos de um preto que morreu a pouca distância do posto. Tinha arma Mauser de 1915 calibre é de 7,92.
16 - Ouviu-se pelas 6 h aproximadamente 6 tiros em 2 grupos, julgando nós que os alemães quisessem atingir a vedeta nº 3 (1).
21 - Como medida de precaução (toda a companhia) indígena estava em armas para de pronto ocupar as trincheiras do lado que fosse atacado todos os dias das 3 ½ para as 4 ia juntamente com guarnições peça (4 homens) para a trincheira.
27 - Ouviu-se neste posto grande bombardeamento pelas 6 h, sabendo-se mais tarde que era o “Adamastor” (2) e “Chaimite” (3) que estava metralhando p/posto fronteiriço da Namaca (Quartel e Fábrica) (4).
28 - As peças de 7 cm bombardearam o quartel e fábrica, ao bombardeamento os alemães não responderam o que dava a impressão de que aquele posto estava desguarnecido.
29 - Novo bombardeamento para o mesmo posto alemão, a seguir a isto atravessava o rio 2 lanchas, a da frente com indígenas a da retaguarda com europeus, os alemães que se achavam entrincheirados deixaram aproximar as lanchas e abriram fogo com metralhadoras, havendo muitos feridos, 1 capitão metralhadoras Alpoim desaparecido, 3 tenentes feridos gravemente, 1 sargento morto, isto é o que consta. Este desastre foi motivado por alguns oficiais afirmarem que não existia alemão algum no posto.
31 - Seriam quase 23 horas a vedeta nº 8 deu um tiro numa hiena, por ela se ter aproximado bastante da mesma vedeta.

França 1918

JUNHO
4 - Ouvi dizer que alemães tinham 1 peça vinda do interior, comandante da Chaimite e 1 guarda marinha prisioneiros dos alemães.
5 - Da 1 e meia para as 2 h ouviu-se uns tiros dados por uma vedeta, sabendo-se mais tarde que era um cavalo-marinho. (É claro que cada um foi ocupar os seus postos nas trincheiras retirando ½ h depois quando se soube a causa dos tiros).
6 - Pelas 5 ½ ouviram-se uns tiros do lado dos alemães ao que uma força que estava no posto nº 1 respondeu, nesta ocasião também se ouviu metralhadora, este tiroteio foi devido a guarda ao posto se pôr um pouco a descoberto do caminho na ocasião que recolhia ao acampamento.
7 - Repetiu-se a mesma cena mas com menos fogos. Pelas 20 h chegaram a este posto (Nachinamóco) duas peças de marinha de 37mm.
10 - A peça que aqui se achava desde 6 de Maio findo retirou para Namaca a fim de se incorporar na bateria, com excepção do pessoal. De manhã foi encontrado morto o cavalo-marinho, aquele que uma patrulha e não a vedeta fez fogo no dia 5. Pelas 7 ½ passou neste acampamento um pelotão de infantaria a cavalo G.R. Lourenço Marques para Namôto.
13 - Das 4 para as 4 ½ ouviu-se grande bombardeamento para os lados de Namaca que se prolongou até às 11 h, sabendo-se mais tarde que os alemães tinham atacado o posto pela retaguarda ocupando trincheiras e claro que tudo estava dormindo a esta hora o que não deve ser, pois que em geral eles atacam sempre quando amanhece, em conclusão deste assalto ficaram mortos dois soldados de artilharia e um de infantaria, levando os alemães como prisioneiros um tenente de infantaria e alguns soldados de infantaria, dizem que as mortes foram por meio de bomba.

15 - Muito próximo das 5 h ouviu-se grande troca de tiros no posto nº 1 indo uma força de comando de oficial em auxílio da força que está no posto, mas o ataque foi pequeno pois que os alemães logo que fazem partida não se fazem esperar regressam logo à outra margem, neste ataque ficou o 1º sargento (Mendes de infantaria) ferido nas nádegas tendo de abandonar o posto, porque a maioria dos saldados não sabendo fazer fogo, pois quando o fazem escondem a cabeça e nem chegam (algum..!) a fazer pontaria.
17 - Seriam 0,h30 uma das vedetas deram um tiro numa das praças da patrulha de ronda motivado por a mesma patrulha trocar o itinerário do giro. Pelas 5 h pouco mais ou menos ouviu-se grande tiroteio no posto nº 1 marchou uma força de oficial em auxílio, mas triste é dize-lo encontrou 3 mortos 1 cabo europeu e 2 indígenas 3 feridos e 1 dos homens da patrulha de ronda foi feito prisioneiro, tanto dos mortos como dos feridos os alemães roubaram os equipamentos e as armas. Foi preciso haver este desastre para acabar com o referido posto.
20 - Seis (6) espiões fuzilados, 1 reforço de sargento e 14 praças do 21.
24 - Pelas 4 ½ ou 5 h foi este posto atacado por uma patrulha (calcula-se pelo rasto encontrado) mas certamente mais à retaguarda estaria mais gente, mas como o quadrado (5) abriu fogo não se atreveram a aparecer, pois que havendo uma pequena troca de tiros retiraram.
(Neste dia estava com febre)
28 - Pelas 23 h chegaram a este posto 2 peças 7cm m/82.

Macau 1906

JULHO
1 -
Vindo um comboio de viveres de Namôto para Nahcinamóco, foi este atacado por um bando de boches na langua…! grande, por meio de emboscada, mataram 5 carregadores e levando alguns géneros, como represália bombardeamos toda a margem direita do Rovuma fazendo incidir o fogo onde haviam habitações.
(Achava-me com febre)
12 - Estive com febre, temperatura 38,7 injecção.
14 - Estive com febre, temperatura manhã 39,8, tarde 38,4 injecção.
15 - Estive com febre, temperatura 40,2 manhã, 38,6 tarde injecção.
17 - Estive com febre, temperatura 35,7 manhã.
22 -Pelas 7 h houve revista sanitária às praças europeias existentes no posto, sendo relacionadas algumas praças para serem presentes à junta em Kionga, em virtude de ordem telegráfica. Os oficiais da 19ª companhia deram parte de doente com excepção do tenente Eusébio e alferes médico. Seriam 18 ½ h os alemães do posto fronteiriço ao nosso fizerem uso de um holofote demorando a luz do mesmo entre as vedetas nºs 3 e 4.
23 - Seriam 1,30 uma vedeta pressentindo inimigo deu 2 tiros como alarme, 2 faces do quadrado fizerem fogo talvez durante 5’ não havendo ferimentos.
24 - Pelas 9 h pouco mais ou menos apareceu na margem direita do Rovuma 1 preto agitando uma bandeira branca, avançando também oficial alemão que queria parlamentar com comandante do posto para entregar 2 cartas d’oficiais prisioneiros. Neste dia nada d’anormal.

30/31 - Nada d’anormal. Estive com febres.
AGOSTO
1 a 7 - Nada d’anormal. Estive com febre.
8 - Seriam umas 20 ½ h ouviram-se distintamente 3 ou 4 leões até às 2 h. Estive com febres, mas mais lentas.
9 - Seriam 21 h tornaram-se a ouvir os mesmos leões até de madrugada. Pouco mais ou menos a esta hora da margem alemã ouviram-se 2 tiros, havendo quem afirmasse que as balas tinham passado por cima do quadrado. Estive com febres, mas mais lentas.
10/11 - Febres lentas. Nada de anormal.
15 - Os alemães atacaram o comboio de viveres na langu… (!) do Namôto frente este posto, matando 1 soldado branco, 1 preto e carregadores ferindo vários outros pretos.
23 - Marchei de Nachinamóco para Namôto, seriam 12 h aproximadamente, chegando ao meu destino pelas 18 h bastante fatigado.
24 - Foi o posto de Nachinamóco atacado desde o escurecer até às 21 h.
26 - Saindo de Namôto um camion com doentes para Kionga, foi este atacado pelos alemães, atirando-lhe uma bomba que inutilizou o depósito de gusa… (!).
Depois desta data não foram encontrados mais detalhes na agenda. É provável que Alfredo Alves da Silva tenha feito o percurso inverso, Namôto-Palma-Porto Amélia, onde embarcou com destino à Metrópole, para fazer parte do Corpo Expedicionário Português a França, onde esteve com a sua bateria de artilharia de montanha (m/82).

* - Artilharia de Montanha esteve estacionada na Castelo de Abrantes e em Penamacor.**- Kionga ou Quionga, Namôto ou Namoto, Namaca, Nachinamóco ou Metchimo-Nachinomoca, Nhica, foram aquartelamentos e acantonamentos militares na foz e margens do Rovuma (Norte de Moçambique).
(1) - Vedeta (soldado combatente destacado num posto avançado com a missão de observar a aproximação do inimigo).
(2) - Adamastor (cruzador, navio de guerra português)
(3) - Chaimite (canhoeira, navio de guerra português).
(4) - Fábrica (fábrica alemã de preparação de algodão - África Oriental alemã).
(5) - Quadrado (aquartelamento militar com trincheiras, em forma de quadrado).

NOTA: A parte II deste Diário será publicado no mês de Janeiro 2010